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 O casamento é a instituição falida mais invejada da história da humanidade. 


Dois indivíduos completamente diversos um do outro, dois rios paralelos que em algum momento se cruzam e, se tudo correr bem, vão desaguar no oceano plácido da Eternidade. Mas se as coisas não forem exatamente assim (e raramente o são)? É justo essa a magia do amor. Vinícius de Moraes (1913 – 1980), gênio e um especialista no assunto, disse muito bem em seu “Soneto de Fidelidade” (1946) que o amor, em sendo chama, não pode ser imortal, mas pode ser infinito enquanto os amantes se amarem. Pode ser redundante, óbvio até, mas o amor é mesmo ridículo, como alega o poeta lusitano Fernando Pessoa (1888 – 1935), outra sumidade no assunto.

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A picardia cínica de Machado de Assis (1839 – 1908), contudo, é que parece definir não o amor, mas sua prova factual mais evidente — ao menos do ponto de vista sociojurídico —, ao dizer que o amor foi feito por Deus, mas o casamento é uma invenção do diabo, que tomou a cabeça do homem e o fez confundir este com o primeiro. A opinião do Bruxo do Cosme Velho sobre a consequência do casamento (ou do amor verdadeiro) também é conhecida. Disse Machado ao encerrar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), uma de suas melhores obras, que “Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Puristas dirão que quem falava era o protagonista, mas além de toda obra conter um naco fornido da alma do autor, o pessimismo, a desilusão, a descrença de Machado eram não apenas célebres. Foi por meio deles que, dosando cada palavra; valendo-se da condição de mulato num Brasil até hoje esquizofrenicamente racista; até se aproveitando um pouco desse status de coitado que se imaginava defini-lo, aquele homem que tinha tudo para ser como todos os outros chegou lá. E eis que se atinge também outro grande perigo da vida a dois, a ambição, a vontade de se destacar, de vencer, a ganância, separados entre si por um fio muito tênue, mas que pode se romper — e que, não raro, se rompe mesmo. E tanto pior se um dos cônjuges se encontra alguns degraus abaixo do outro na escala social.


Não existe nada de errado em acumular bens, estando-se ou não casado — ainda que, verdade seja dita, quem não ficou rico até o dia em que subiu ao altar dificilmente ficará após o fazer, a não ser que ganhe na loteria, ou, por óbvio, esse matrimônio se constitua num atalho para a fortuna súbita. Não se tem muito claro, mas essa última hipótese pode ser ter sido o caso da personagem de Lily Collins em “Sorte de Quem?”, lançado em 18 de março de 2022, e cuja direção coube a seu marido, Charlie McDowell — é impossível aqui não pensar numa possível anedota entre irônica e cáustica, até sexista, quem sabe, assumo. Deixando a polêmica de lado (mas não por completo), um exercício fundamental que recomendo para se absorver de fato a essência de um filme é se ater a seu título original, seja lá que idioma se esteja tratando. Por acaso, falo inglês fluentemente, mas não falo, nem de modo fluido, nem arrastado, polonês, russo, mandarim ou alemão, e sou salvo por um desses programas de tradução simultânea, das poucas coisas que me fazem renegar meu ódio recolhido à tecnologia. No que respeita ao filme de McDowell, “Windfall”, ou “golpe de sorte”, em tradução livre, é quase uma antítese do nome escolhido para se divulgar a produção no Brasil, ao menos se se desconsiderar o sarcasmo. Nos tempos estranhos em que vivemos, quando se faz necessário emitir alerta de ironia — assim mesmo, por extenso e o mais explicitamente possível —, muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos. Sócrates (470 a.C. — 399 a.C.) decerto se revira na cova ao saber de pérolas que tais.


“Sorte de Quem?” é certamente mais genial do que o próprio diretor pode imaginar. Tomando por ponto de partida um argumento aparentemente sem qualquer vínculo com o que se pretende discutir, McDowell elabora um raciocínio ousado para analisar a fragilização dos relacionamentos e a hipocrisia daqueles que a compõem. Todo o conflito tem início quando os personagens de Collins e Jesse Plemons, um casal acintosamente rico para a pouca idade que ostentam, decidem passar uma temporada na casa de campo que mantém num lugar retirado e aprazível, uma reprodução em cores as mais vivas de uma tela de Monet ou de Van Gogh. Antes que tenham chegado, quem desfruta do amarelo aceso da vastidão dos laranjais da propriedade, uma beleza gratuita da fotografia de Isiah Donté Lee, é o tipo vivido por Jason Segel, que, conforme se vai assistir algumas sequências adiante, não é só um delinquente um tanto atrapalhado, mas um psicopata frio, cuja covardia e a grande tibieza frente à vida lhe servem de pretexto para fazer toda a sorte de barbaridades, a exemplo de entrar em casas que não lhe pertencem sem convite.

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O roteiro de Andrew Kevin Walker — muito mais interessante que o da superprodução “Seven — Os Sete Crimes Capitais” (1995), de David Fincher, como trabalhou em muitas outras ocasiões — deixa subentendido que o invasor tenta sair sem que os donos da casa o notem, mas em se apreciando seu comportamento ao longo da pouco mais de hora e meia de projeção, pode-se afirmar sem margem de erro que queria ser flagrado, também porque seria essa a chance de armar seu circo (e de conseguir muito mais do que NÃO pretendia afanar). O que se vê destarte até o desfecho — inusitadamente sangrento, mormente numa narrativa que se destacava até então pela pungência dos diálogos, plenos de elucubrações sobre a importância da estabilidade financeira num casamento, na boca de Plemons, e de iluminações românticas sobre um casamento que se revela de fachada, ditas por Collins — é uma sucessão de provocações de parte a parte, em que o bandido de Segel tem uma cabeça de vantagem (sem contar o fato de que se apropriara da pistola do anfitrião, evidentemente).

McDowell vem adquirindo destaque em filmes não propriamente fáceis, como os que tornaram o pai conhecido. Malcolm McDowell, astro de “Calígula” (1979), o épico pornô de Giancarlo Lui, Tinto Brass e Bob Guccione (1930-2010); e “Laranja Mecânica” (1971), levado à tela pelo gênio de Stanley Kubrick (1928 – 1999), certamente seria o vilão ideal para “Sorte de Quem?”, sem querer tirar o mérito do ótimo desempenho de Segel. Este trabalho do diretor está para o casamento e seus assuntos correlatos como “The Discovery” (2017) está para a reflexão sobre a vida em si mesma e sua contraposição à morte, com a sensível diferença de que em “Sorte de Quem?” Charlie McDowell está visivelmente mais maduro.

Comparações do gênero “A é o novo B” são quase sempre tolas, e não as irei fazer; o que digo é que, a seu modo, o diretor fez um dos filmes mais ousados e elucidativos sobre o casamento, sobretudo acerca dos casamentos infelizes, que o são muito por causa do ardil de um dos dois, que, a exemplo da reviravolta tão lacônica quanto sagaz, prefere enganar a dar cabo de uma união que se esfacela de podre. Menos violento que “The Trip” (2021), de Tommy Wirkola, mas igualmente filosófico, “Sorte de Quem?” se emparelha com a sofisticação do melhor de Bergman, evocando a sofisticação do sueco, mas transferindo-a para o delirante século XXI. Não é todo dia que se testemunha o advento de algo novo, e, outrossim, genuíno (e quiçá essa história seja uma exceção quanto ao aspecto autobiográfico das obras de arte).

Filme: Sorte de Quem?
Direção: Charlie McDowell
Ano: 2022
Gênero: Drama/Thriller
Nota: 10/10

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